sexta-feira, 21 de março de 2014

Desejo Crónico | Os lusíadas

in jornal Reconquista, 20 março 2014

Os lusíadas

Um homem acorda, sabendo-se gémeo clonado do filho unigénito de Deus. Levanta-se, escova os dentes, beija o filho na testa, despede-se da esposa, mete-se no carro e vai trabalhar. Há vícios incorrigíveis: o cigarro, roer as unhas e o humanismo, essa última grande meta-narrativa legitimadora, pegando em Lyotard e olhando-o pelas lentes de Peter Sloterdijk, Giorgio Agamben ou José Gil. Sabe-se filho da História, soberanamente maiusculizada como se tivesse sido Deus a teclá-la nos ecrãs do mundo, carimbando a invenção da roda, os impérios, os genocídios e os hambúrgueres do McDonald’s no traçado providencial dos nossos destinos. Descobrimos a Índia e, durante séculos, Portugal não foi um país pequeno: foi uma morgue e um grande emissário de órfãos. O mesmo homem que assobia a caminho do trabalho nunca anotou, nas aulas de História, um sumário assim: “Retrato de Vasco da Gama como um carniceiro egomaníaco. Autópsias dos corpos das mulheres violadas em Goa, Damão e Diu. As lágrimas de Pedro Passos Coelho: tópicos sobre teratologia no espaço mediático.”
Não existe a História, esse rosto intocável de verdades absolutas que se crispam no bronze das estátuas. Existem histórias, múltiplos gestos e silêncios, singularidades feitas da mesma carne perecível desse grande corpo de húmus que usamos hoje como chão e como pasto. Um naco de excesso no prato lascado do universo por onde verte o líquido amniótico de tudo quanto desconhecemos. E o mesmo homem come com talheres como quem finge esquecer que chegou a farejar o alimento, a esquartejá-lo com os dentes. Depois, segundo Freud, escondeu as próprias fezes e fez nascer a civilização. E viveu feliz para sempre: branco, macho, paranoico até dizer chega, menino-prodígio dos quarks e das mitocôndrias, o verdadeiro rei da selva pós-colonial, um animal com a mania de que é menos animal que os outros. Sem décimo terceiro mês nem dignidade, mas é a vida, a gente vai andando como pode, uns dias melhor, outros pior, mas até amanhã se Deus quiser (e oxalá não queira, oxalá Deus reze também, do outro lado do céu, à espera de um milagre, de uma ressurreição dos vivos…).
O mesmo homem desconhece o último livro de José Tolentino Mendonça, A Papoila e o Monge (2013), no qual há um haiku que apela, serenamente, deleuzianamente, a que percamos o rosto, esta efígie de flagelos milenares (do primeiro banho de sangue à última piada sexista): “Vive como quem constrói uma imagem / uma imagem / que desaparece”. O mesmo homem sabe-se mortal e é boa pessoa. É honesto, lê jornais na pausa para o almoço, indigna-se contra os políticos, faz festas no dorso do cão. Não pensa na morte, mas vê o rosto do pai (cuidados paliativos, partilha das terras, saudade eterna de sua esposa, filhos e netos) sempre que dissolve o açúcar no café enquanto pasma para a amplidão dos vidros, como se um intervalo de tempo se abrisse no sangue das coisas e uma vaga vertigem devorasse tudo aquilo que morre antes de nós: faturas, invejas, o PIB, bitcoins e analgésicos.
Esse homem está hoje, porventura, a ser o que sempre foi, a rever os mesmos programas, a contar os mesmos tostões, a levantar a voz perante o filho que entornou o leite na alcatifa. E é um bom pai, mesmo sabendo que nunca terá um autorretrato nas galerias do Tate Modern. Não sabe pintar, mas é um excelente guarda-redes e gosta que os desenhos do filho decorem a porta do frigorífico, como lembretes diários de um comovido parabéns. Não é artista, nem filósofo: é apenas esse corpo de sangue e palavras onde se instalam sucessivas formas de visibilidade. É assim que Jacques Rancière compreende o mundo como um lugar de afetos, de potências de sentido (artístico ou não): “a maneira como, ao juntar palavras ou formas, não se está simplesmente a definir formas da arte mas certas configurações do visível e do pensável, certas formas de habitação do mundo sensível” (in O Destino das Imagens, 2011: 123). Ele é o que há, uma presença intacta como magma de intensidades e devires, mesmo que nunca descubra o caminho marítimo para a Atlântida ou outro Quinto Império engaiolado. Ele é o pai que trabalha e ama muito o filho, mas a História de Portugal só gosta de inaugurações e meninos bonitos. Citando Álvaro de Campos: “Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?” Há verdades que só se iluminam pelo sol das ficções.

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