in jornal Reconquista, 20 março 2014
Os lusíadas
Um homem acorda, sabendo-se gémeo clonado do
filho unigénito de Deus. Levanta-se, escova os dentes, beija o filho na testa,
despede-se da esposa, mete-se no carro e vai trabalhar. Há vícios
incorrigíveis: o cigarro, roer as unhas e o humanismo, essa última grande
meta-narrativa legitimadora, pegando em Lyotard e olhando-o pelas lentes de
Peter Sloterdijk, Giorgio Agamben ou José Gil. Sabe-se filho da História,
soberanamente maiusculizada como se tivesse sido Deus a teclá-la nos ecrãs do
mundo, carimbando a invenção da roda, os impérios, os genocídios e os
hambúrgueres do McDonald’s no traçado providencial dos nossos destinos.
Descobrimos a Índia e, durante séculos, Portugal não foi um país pequeno: foi
uma morgue e um grande emissário de órfãos. O mesmo homem que assobia a caminho
do trabalho nunca anotou, nas aulas de História, um sumário assim: “Retrato de
Vasco da Gama como um carniceiro egomaníaco. Autópsias dos corpos das mulheres
violadas em Goa, Damão e Diu. As lágrimas de Pedro Passos Coelho: tópicos sobre
teratologia no espaço mediático.”
Não existe a História, esse rosto intocável de
verdades absolutas que se crispam no bronze das estátuas. Existem histórias,
múltiplos gestos e silêncios, singularidades feitas da mesma carne perecível
desse grande corpo de húmus que usamos hoje como chão e como pasto. Um naco de
excesso no prato lascado do universo por onde verte o líquido amniótico de tudo
quanto desconhecemos. E o mesmo homem come com talheres como quem finge
esquecer que chegou a farejar o alimento, a esquartejá-lo com os dentes.
Depois, segundo Freud, escondeu as próprias fezes e fez nascer a civilização. E
viveu feliz para sempre: branco, macho, paranoico até dizer chega, menino-prodígio
dos quarks e das mitocôndrias, o
verdadeiro rei da selva pós-colonial, um animal com a mania de que é menos
animal que os outros. Sem décimo terceiro mês nem dignidade, mas é a vida, a
gente vai andando como pode, uns dias melhor, outros pior, mas até amanhã se
Deus quiser (e oxalá não queira, oxalá Deus reze também, do outro lado do céu, à
espera de um milagre, de uma ressurreição dos vivos…).
O mesmo homem desconhece o último livro de José
Tolentino Mendonça, A Papoila e o Monge
(2013), no qual há um haiku que
apela, serenamente, deleuzianamente, a que percamos o rosto, esta efígie de
flagelos milenares (do primeiro banho de sangue à última piada sexista): “Vive
como quem constrói uma imagem / uma imagem / que desaparece”. O mesmo homem
sabe-se mortal e é boa pessoa. É honesto, lê jornais na pausa para o almoço,
indigna-se contra os políticos, faz festas no dorso do cão. Não pensa na morte,
mas vê o rosto do pai (cuidados paliativos, partilha das terras, saudade eterna
de sua esposa, filhos e netos) sempre que dissolve o açúcar no café enquanto
pasma para a amplidão dos vidros, como se um intervalo de tempo se abrisse no
sangue das coisas e uma vaga vertigem devorasse tudo aquilo que morre antes de
nós: faturas, invejas, o PIB, bitcoins
e analgésicos.
Esse
homem está hoje, porventura, a ser o que sempre foi, a rever os mesmos
programas, a contar os mesmos tostões, a levantar a voz perante o filho que
entornou o leite na alcatifa. E é um bom pai, mesmo sabendo que nunca terá um
autorretrato nas galerias do Tate Modern. Não sabe pintar, mas é um excelente
guarda-redes e gosta que os desenhos do filho decorem a porta do frigorífico,
como lembretes diários de um comovido parabéns. Não é artista, nem filósofo: é
apenas esse corpo de sangue e palavras onde se instalam sucessivas formas de
visibilidade. É assim que Jacques Rancière compreende o mundo como um lugar de
afetos, de potências de sentido (artístico ou não): “a maneira como, ao juntar
palavras ou formas, não se está simplesmente a definir formas da arte mas
certas configurações do visível e do pensável, certas formas de habitação do
mundo sensível” (in O Destino das Imagens,
2011: 123). Ele é o que há, uma presença intacta como magma de intensidades e
devires, mesmo que nunca descubra o caminho marítimo para a Atlântida ou outro
Quinto Império engaiolado. Ele é o pai que trabalha e ama muito o filho, mas a
História de Portugal só gosta de inaugurações e meninos bonitos. Citando Álvaro de Campos: “Arre, estou
farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?” Há verdades que só se
iluminam pelo sol das ficções.
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