sexta-feira, 7 de março de 2014

DESEJO CRÓNICO | Segunda Crónica

Desejo Crónico é um conjunto de crónicas produzidas no contexto da Oficina de Leitura/Dramaturgia do projeto "Inscrição" da Terceira Pessoa, publicadas no jornal "Reconquista". A oficina tem orientação de Diogo Martins e envolve um grupo pessoas da comunidade em torno do livro "Portugal, Hoje: o medo de existir" do filósofo português José Gil.

Neuroses e contas bancárias

Máquina-buda: eis como o filósofo Peter Sloterdijk descreve a televisão e os seus efeitos (ou a ausência destes, como um miasma às avessas de um efeito da ausência de efeitos). Perante o ecrã desfilam avulsamente imagens de imagens, opiniões de opiniões, sombras de outras sombras de corpos irremediavelmente leves e intocáveis, corpos em trânsito, sem inscrição que os perenize nas nossas experiências: morrem militantes na Ucrânia, Miguel Relvas está de volta, aqui um filho empurra a mãe do último andar do apartamento para simular um suicídio, ali qualquer coisa acontece, mas já não me lembro bem do que foi… Sloterdijk questiona-nos neste sentido sobre a diferença que existe entre um televisor ligado e um desligado. E a resposta é: nenhuma. É tudo uma questão de ritmo, de premir um botão, de haver corrente elétrica, de ver mas não olhar, de olhar sem reparar. Temos programas que não contêm mensagem, apenas um cortejo incipiente de imagens, com mais ou menos sangue à mistura. Escreveu Golgona Anghel: “No lugar do grito, / uma greta”. Num remate: é a vida.
Mas é igualmente a morte, qualquer coisa que amortece e esvazia as forças, os ânimos, a confiança, um projeto, um risco, uma atitude. Para que serve um poema na luta contra a pretensa irresponsabilidade fiscal de que somos acusados? Não serve para nada, de facto, mas serve para revelar que a lógica deste pragmatismo deficiente, que bajula mercados, bolsas e oscilações estatísticas, trabalha num enorme vazio, um intenso buraco negro que suga todas as singularidades – ler um poema, cozinhar uma refeição, abraçar um neto, fotografar uma nuvem, pasmar enquanto se espera pela nossa vez de sermos atendidos na (in)segurança social –, nivelando-as em estrita função do valor que têm nesse tiranismo do “para que serve isto, incluindo este desejo crónico, esta leitura, este momento em que tu, leitor, estacionas o teu rosto perante estas linhas e começas a sentir qualquer coisa perfurando-te a barriga ou a consciência (onde guardas a alma? ainda te lembras de que tens uma ou achas que isto é tudo conversa fiada?), qualquer coisa que te diz que é mesmo a ti que este texto se dirige, fazendo-te cócegas, puxando-te uma orelha, enervando-te…” (desculpa).
Para que serve uma inscrição? Para que a parábola de Kafka “Uma mensagem imperial”, por exemplo, deixe alguma coisa nos sujeitos, nem que seja tão-só uma rasteira que nos leve a pensar “Mas o que é que acabou de acontecer?”, a sentir de novo um arrepio na pele (porque isso já é sintoma de que temos uma consciência corporal, que a pele existe e, com ela, um eu que sente e se sente vivo, acordado, real – mas realizado?). Kafka descreve um súbdito que recebe uma mensagem de um rei no seu leito da morte, ficando depois condenado a ser um eterno estafeta, refém de uma ordem que se torna cada vez mais imperativa mesmo depois de o rei não mais existir. A quem obedece o súbdito, afinal? A ninguém, a nada. Que mensagem veicula, afinal? Nenhuma, um silêncio eloquente. Ele apenas obedece, cumpre as suas ordens, dá corpo a uma lei invisível, sistémica, que apenas diz “Faz!” sem especificar o quê. Como nota Sloterdijk, somos todos potenciais mensageiros (do grego angeloi, ‘anjos’). Contudo “vivemos em nós uma grande morte de anjos – as últimas pessoas são anjos vazios, não-mensageiros, homens mudos” ou “anjos sem mestre” (in Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária, Fenda, 2001, pp. 28-29). O mestre reveza na superfície neutra do ecrã televisivo: o que é que se herda – valores, crenças, sonhos, ideias, paixões – de um mestre assim? Apenas “neuroses e contas bancárias”, afirma Sloterdijk. Porque, hoje, quando alguém herda algo, pergunta-se sempre “quanto?” e não “o quê?”, é sinal de que nos tornamos “deserdados espirituais”. Eis, por isso, a urgência de nos inscrevermos enquanto presenças intactas: para salvarmos a honra da nossa existência, que não serve para nada, porque existir é anterior a qualquer preço ou medida orçamental. (Lembra-te disso, leitor. Lembra-te de ti. Deixa-te devir.)

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