Desejo
Crónico é um conjunto de crónicas produzidas no contexto da Oficina
de Leitura/Dramaturgia do projeto "Inscrição" da Terceira Pessoa, publicadas no jornal "Reconquista". A
oficina tem orientação de Diogo Martins e envolve um grupo pessoas da
comunidade em torno do livro "Portugal, Hoje: o medo de existir" do
filósofo português José Gil.
Neuroses e contas bancárias
Máquina-buda: eis como o filósofo Peter
Sloterdijk descreve a televisão e os seus efeitos (ou a ausência destes, como
um miasma às avessas de um efeito da ausência de efeitos). Perante o ecrã
desfilam avulsamente imagens de imagens, opiniões de opiniões, sombras de
outras sombras de corpos irremediavelmente leves e intocáveis, corpos em
trânsito, sem inscrição que os perenize nas nossas experiências: morrem militantes
na Ucrânia, Miguel Relvas está de volta, aqui um filho empurra a mãe do último
andar do apartamento para simular um suicídio, ali qualquer coisa acontece, mas
já não me lembro bem do que foi… Sloterdijk questiona-nos neste sentido sobre a
diferença que existe entre um televisor ligado e um desligado. E a resposta é:
nenhuma. É tudo uma questão de ritmo, de premir um botão, de haver corrente
elétrica, de ver mas não olhar, de olhar sem reparar. Temos programas que não
contêm mensagem, apenas um cortejo incipiente de imagens, com mais ou menos
sangue à mistura. Escreveu Golgona Anghel: “No lugar do grito, / uma greta”.
Num remate: é a vida.
Mas é igualmente a morte, qualquer coisa que
amortece e esvazia as forças, os ânimos, a confiança, um projeto, um risco, uma
atitude. Para que serve um poema na luta contra a pretensa irresponsabilidade
fiscal de que somos acusados? Não serve para nada, de facto, mas serve para
revelar que a lógica deste pragmatismo deficiente, que bajula mercados, bolsas
e oscilações estatísticas, trabalha num enorme vazio, um intenso buraco negro
que suga todas as singularidades – ler um poema, cozinhar uma refeição, abraçar
um neto, fotografar uma nuvem, pasmar enquanto se espera pela nossa vez de
sermos atendidos na (in)segurança social –, nivelando-as em estrita função do
valor que têm nesse tiranismo do “para que serve isto, incluindo este desejo
crónico, esta leitura, este momento em que tu, leitor, estacionas o teu rosto
perante estas linhas e começas a sentir qualquer coisa perfurando-te a barriga
ou a consciência (onde guardas a alma? ainda te lembras de que tens uma ou
achas que isto é tudo conversa fiada?), qualquer coisa que te diz que é mesmo a
ti que este texto se dirige, fazendo-te cócegas, puxando-te uma orelha, enervando-te…”
(desculpa).
Para
que serve uma inscrição? Para que a parábola de Kafka “Uma mensagem imperial”,
por exemplo, deixe alguma coisa nos sujeitos, nem que seja tão-só uma rasteira
que nos leve a pensar “Mas o que é que acabou de acontecer?”, a sentir de novo
um arrepio na pele (porque isso já é sintoma de que temos uma consciência
corporal, que a pele existe e, com ela, um eu
que sente e se sente vivo, acordado, real
– mas realizado?). Kafka descreve um
súbdito que recebe uma mensagem de um rei no seu leito da morte, ficando depois
condenado a ser um eterno estafeta, refém de uma ordem que se torna cada vez
mais imperativa mesmo depois de o rei não mais existir. A quem obedece o
súbdito, afinal? A ninguém, a nada. Que mensagem veicula, afinal? Nenhuma, um
silêncio eloquente. Ele apenas obedece, cumpre as suas ordens, dá corpo a uma
lei invisível, sistémica, que apenas diz “Faz!” sem especificar o quê. Como
nota Sloterdijk, somos todos potenciais mensageiros (do grego angeloi, ‘anjos’). Contudo “vivemos em
nós uma grande morte de anjos – as últimas pessoas são anjos vazios,
não-mensageiros, homens mudos” ou “anjos sem mestre” (in Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária, Fenda, 2001, pp. 28-29). O
mestre reveza na superfície neutra do ecrã televisivo: o que é que se herda –
valores, crenças, sonhos, ideias, paixões – de um mestre assim? Apenas
“neuroses e contas bancárias”, afirma Sloterdijk. Porque, hoje, quando alguém herda
algo, pergunta-se sempre “quanto?” e não “o quê?”, é sinal de que nos tornamos
“deserdados espirituais”. Eis, por isso, a urgência de nos inscrevermos
enquanto presenças intactas: para salvarmos a honra da nossa existência, que
não serve para nada, porque existir é anterior a qualquer preço ou medida
orçamental. (Lembra-te disso, leitor. Lembra-te de ti. Deixa-te devir.)
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